Carneiro Leão – a ditadura da razão

O que é a ditadura da razão? A ditadura da razão é exclusiva e excludente e consiste em montar um sistema universal de prestar contas e dar explicações evidentes e suficientes, coerentes e consistentes de tudo que é, de tudo que se conhece e de tudo que se faz, seja nas ações que se põem, seja nas atitudes que se tomam, seja nas omissões, que se praticam. Prestar conta e dar explicação está em arguir, consiste em argumentar, no sentido de oferecer, discursivamente, condições necessárias e suficientes de possibilidade e determinação, de controle e sustentação. Racionalidade não diz apenas a regra e o domínio da razão. Racionalidade diz sobretudo a razão, como regra e domínio de tudo. Para os fragmentos de Heráclito nos poderem levar até à atmosfera do pensamento, temos de nos dispor a violar a ditadura da razão e de nos descolar da discursividade da lógica. Mas para ficar com quê? de mãos vazias? ou com uma mão na frente e outra atrás? – Não! Em lugar de razão e lógica, aquela disposição e esta descolagem nos presenteiam com o vigor do Lógos: a dialética. A morada do pensador nunca pode ser de exclusão mas é sempre de inclusão. O pensamento acolhe no e pelo ordinário o extraordinário, vê o invisível no visível, é a disputa recíproca do que se exclui com o que se inclui. Os ditos do pensamento não se movem rígidos e inflexíveis, como a necessidade; não são “dicta-dura”, os ditos do pensamento fluem maleáveis e dóceis, como a possibilidade; são “dicta suavia”.

Carneiro Leão, “Filosofia Grega: uma introdução”

Charles Taylor – a razão instrumental

A primazia da razão instrumental também é evidente no prestígio e na aura que envolvem a tecnologia e nos faz acreditar que deveriamos buscar soluções tecnológicas mesmo quando se faz necessário algo muito diferente. Vemos isso com frequência na esfera política […]. Entretanto, também invade outros domínios, como a medicina. Patricia Benner argumentou em diversos trabalhos importantes que a abordagem tecnológica na medicina frequentemente deixou de lado o tipo de cuidado que envolve tratar o paciente como uma pessoa completa com uma história de vida, e não como lócus de um problema técnico. A sociedade e a comunidade médica não raro subestimam a contribuição das enfermeiras, que, com mais frequência do que os especialistas com conhecimento high-tech, oferecem esse cuidado sensível de maneira mais humana.

Charles Taylor, “A ética da autenticidade”

Heidegger – o Dasein não “têm” propriedades, estas são apenas modos de “ser”

Heidegger descarta qualquer denominação do homem enquanto ser “racional”. Dizer que o homem é um “animal racional” é colocá-lo no mesmo nível de um ser-simplesmente-dado (present-at-hand: uma árvore, uma mesa, uma casa), pois atribuí-se uma “propriedade” ao Dasein. “Coisas” cujo “modo” de ser é simplesmente-dado precisam, para ser algo existente, de um “o-que”. Já o Dasein, enquanto única entidade cujo “ser” é uma questão, não.

“The essence of Dasein lies in its existence. Accordingly those characteristics which can be exhibited in this entity are not ‘properties’ present-at-hand of some entity which ‘looks’ so and so and is itself present-at-hand; they are in each case possible ways for it to be, and no more than that. All the Being-as-it-is [So-sein] which this entity possesses is primarily Being. So when we designate this entity with the term ‘Dasein’, we are expressing not its “what” (as if it were a table, house or tree) but its Being.”

Heidegger, “Being and time” (SZ, 42)